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12 de janeiro de 2011

Sobre o Humor

Por: Sylvio Roque de Guimarães Horta




A palavra impressa no papel - a palavra não lida - assemelha-se a um germe latente, à espera de sua hora. Escreve-se na esperança de que alguém se contagie pelo lido, pelo impresso.
É como se as palavras fossem poros por onde vidas diversas pudessem se comunicar. Vidas humanas, é óbvio, pois o que são as palavras para um rinoceronte? O que, um livro para um jacaré?
É na vida - vida de cada um - que a palavra ganha sentido. Abre-se o livro e surge a palavra escrita. Grita-se e ouve-se, surge a palavra falada.

A palavra é, assim, abstração de realidade muito mais complexa - não as frases, sentenças, parágrafos, contextos escritos ou falados, mas realidade que se confunde com as coisas, pensamentos, sentimentos, humores. A palavra faz parte de toda uma experiência, postura, sabor de vida. E grande dificuldade nossa é, justamente, analisar esse enorme emaranhado de sentidos em que ela habita.
Há palavras que não podem ser ditas em certas situações, ficam proibidas. Em outras, são toleradas. Essa carga emocional, à qual estão aderidas, é responsável por muito dos problemas "intelectuais", que têm a sua origem, ao contrário do que se acredita, muito mais na falta de discriminação afetiva do que intelectual.
A nossa capacidade de visão, ou melhor, de abertura para a realidade, fica, dessa maneira, dependendo do quantum de verdade que podemos suportar. Conforme Santo Agostinho: Non intratur in veritatem, nisi per caritatem ...

O que fazer? (1)
Retomando o fio, dizíamos que a palavra é uma abstração de realidade muito mais complexa, confundida com as coisas, com o pensamento, com os sentimentos, com os humores. Realidade onde se aloja o sentido das palavras.
Há um poema de Carlos Drummond de Andrade que manifesta bem - com palavras! - esse algo mais profundo do que a língua, do que a fala. Algo que pré-existe a ela, ou a qualquer linguagem:
... Anoitece, e o luar, modulado de dolentes canções que preexistem aos intrumentos de música, espalha no côncavo, já pleno de serras abruptas e de ignoradas jazidas, melancólica moleza (2).
Sobre isso escreve Ortega y Gasset:

" ... se tomarmos apenas o vocábulo e como tal vocábulo - amor, triângulo - ele não tem propriamente significação, pois dela só tem um fragmento. E se ao invés de tomar a palavra por si, em sua pura e estrita verbalidade, a dizemos, então é quando se carrega de significação efetiva e completa. Mas de onde vem para a palavra, para a linguagem, isso que lhe falta para cumprir a função que lhe é costume ser atribuída, isto é, a de significar, de ter sentido? Certamente não lhe vem de outras palavras, não lhe vem de nada do que até agora se chamou linguagem e que é o que aparece dissecado no vocabulário e na gramática, mas de fora dela, dos seres humanos que a utilizam, que a dizem em uma determinada situação. Nesta situação, são os seres humanos que falam, com a precisa inflexão de voz com que pronunciam, com a cara que põem enquanto o fazem, com os gestos concomitantes, liberados ou retidos, quem propriamente 'dizem'.
As chamadas palavras são só um componente desse complexo de realidade e só são, efetivamente, palavras contanto que funcionem nesse complexo, inseparáveis dele (3)".

"O fenômeno torna-se claro no exemplo, sempre lembrado por Ortega, do freqüentador de um bar que dirige ao servente a palavra 'negra', o suficiente para receber em seguida uma caneca espumante de cerveja escura (4)".

"A coisa em sua trivialidade mesma é enorme, pois mostra-nos como todos os outros ingredientes de uma circunstância que não são palavras, que não são sensu stricto 'linguagem', possuem uma potencialidade enunciativa, e que, portanto, a linguagem consiste não só em dizer o que por si diz, mas em atualizar essa potencialidade dizente, significativa do contorno (5)".
Desse modo, uma das funções da linguagem é dar voz à realidade, mostrar a realidade. Deixá-la indecentemente nua. Por isso, quando estamos interessados em conhecê-la, a realidade única que é a minha vida, a sua vida - a realidade que cada um de nós vive por si mesmo, embora em ineludível convivência - temos que usar de uma lógica expositiva, que pratica uma dramatização dos conceitos.
Esse logos narrativo, rico em metáforas, foi batizado por Ortega de razão vital. Os conceitos - meros esquemas abstratos - adquirem, dessa maneira, sentido. O leitor é levado a repetir em sua própria vida os "gestos vitais" que levaram originalmente o escritor a se instalar em determinada dimensão da realidade.
Trata-se do estilo, único recurso para que se possa efetuar o nosso transporte à têmpera adequada, a partir da qual veremos a realidade na qual se instala o texto.

"Uma das razões mais graves da última esterilidade intelectual de boa parte da obra de muitas épocas, e concretamente da que estamos vivendo, - ou talvez acabamos de viver - é a ausência do estilo - vital e literário - adequado para que a realidade se descubra e se manifeste. Acaso pode-se pensar que a realidade - que gosta de se esconder - entregar-se-á a qualquer um, simplesmente por acumular fatos e dados? (6)".

Há outro poema, do poeta Manoel de Barros (7), em que se fala desse nível mais profundo da linguagem, essa pré-linguagem, que não se identifica com os conceitos abstratos, nem com o racionalismo:
No que o homem se torne coisal -, corrompem-se nele os
veios comuns do entendimento.
Um subtexto se aloja.
Instala-se uma agramaticalidade quase insana, que
empoema o sentido das palavras.
Aflora uma linguagem de defloramentos, um
inauguramento de falas
Coisa tão velha como andar a pé.
Esses vareios do dizer.

"Coisa tão velha como andar a pé...". Justamente o andar a pé, a experiência no seu sentido etimológico, a estrutura pré-teorética, na qual estamos instalados, é que necessita do estilo para ser percorrida.
Essa experiência da vida, já chamada, há muito, de sabedoria, constitui a estrutura saborosa da vida. Há várias palavras para designar essa estrutura, cada uma realça um de seus aspectos: têmpera, disposição, atitude, humor, postura. Diz Ortega: "A vida é angústia e entusiasmo e delícia e amargura e inumeráveis outras coisas. Precisamente porque é - manifestamente e em sua raiz - tantas coisas, não sabemos o que é. Nas religiões sincretistas da Roma imperial falava-se de Ísis miriônima. Também é a Vida uma realidade de mil nomes e o é porque consistindo originariamente em um certo sabor ou têmpera - o que Dilthey chama 'Lebensgefühl' e Heidegger 'Befindlichkeit' - esse sabor não é único, mas precisamente miriádico. A todo homem, ao longo de sua vida, lhe vai sabendo o seu viver com os mais diversos e antagônicos sabores. De outro modo, o fenômeno radical Vida não seria o enigma que é (8)".
Estrutura saborosa, têmpera, disposição de ânimo, humor são todas palavras aptas a nos mostrar facetas da nossa realidade, que é um modo de estar - não um estar espacial, mas um estar vivendo. Só que esse estar vivendo não é algo insosso, tem sempre um sabor, mesmo que seja um dissabor.

Tradicionalmente, essa sabedoria foi-nos transmitida através dos livros sapienciais com sua linguagem rica de provérbios, metáforas e narrativas. "Provérbio, em hebraico mashal, é palavra de significado muito mais amplo e dimensão mais religiosa do que sugere sua tradução. Mashal designa uma sentença que tem o poder de produzir uma realidade nova, ou de fazer reconhecer uma experiência vital do povo ou dos sábios e de impô-la como realidade válida (9)".
O humor aparece nesses provérbios também em seu sentido restrito de "aquilo que é engraçado". Esse humor sensu stricto sempre está em tudo que é verdadeiramente humano, dos mais ilustres profetas e sábios, aos mais comuns dos humanos (10).

A palavra humor já nos leva a pensar em uma realidade fluída, flexível, não-rígida. Como costuma acontecer com todas as instituições, a razão acabou por seguir a tendência de se afastar do humor, da brincadeira, do jogo; acabando por tornar-se fria e sem cor. É conhecida a rigidez, a impessoalidade da racionalidade vigente nos dias de hoje. Ortega nos lembra que as pessoas que não possuem sensibilidade e nem dão atenção para a arte são "reconhecidas por uma peculiar esclerose de todas aquelas funções que não são o seu estreito ofício. Até os seus movimentos físicos costumam ser torpes, sem graça nem soltura. O mesmo percebemos na inclinação de sua alma (11)".

O riso, a risada, o senso de humor são, conjuntamente com a seriedade, com o senso de responsabilidade, com o sentido do sagrado, manifestações de uma vida íntegra, bem-temperada. A palavra têmpera indica a presença de um equilíbrio, de uma mistura que modera os polos em conflito.
Encontramos bons exemplos dessa mistura de seriedade e graça, de peso e leveza, nos livros sapienciais, como a exortação ao preguiçoso em Provérbios (6,6): "Vai ter com a formiga, ó preguiçoso, observa seu proceder e torna-te sábio! Ela, que não tem chefe, nem fiscal nem soberano, no verão prepara seu alimento, ajunta no tempo da ceifa sua comida. Até quando dormirás, ó preguiçoso, quando te levantarás do sono? Um pouco dormir, outro pouco cochilar, e mais um pouco cruzar as mãos para descansar, e tua pobreza virá pressurosa... (12)".
Acontece, também, o oposto. Um excesso de humor sem seriedade nos leva direto para a "esculhambação". O Brasil, considerado um país bem-humorado, não rígido - o que é ótimo -, revela para nós, porém, que há o lado sombrio dessa história. Ficamos, contudo, na indecisão: ser ou não ser um país sério, glorificar ou não, o jeitinho brasileiro? (13)

Sem dúvida, perder essa capacidade para o humor, essa espontaneidade, não seria vantagem alguma. Significaria abdicar da possibilidade de se tornar a criança sem a qual ninguém entra no reino dos céus. Sem a qual a vida fica sem graça...
Há quem fale da vida como um jogo, como disposição esportiva - mistura de seriedade e de faz-de-conta - estar in-ludere, instalados numa têmpera ilusionada, como dizem os espanhóis.
Homem = animal que ri. Definição, nessa altura, já não tão risível.



(*) Mestre e doutorando em Filosofia da Educação da Faculdade de Educação da USP.

1) É possível se aprender a amar? Qual a relação entre a nossa fragmentação, a nossa falta de integração, isto é, o fato de não sermos íntegros, e a nossa capacidade de compreensão do real? Qual a r elação entre os nossos muitos lados e os múltiplos sentidos de uma palavra e o caráter multi-facetado da realidade? São realidades problemáticas que não podemos deixar de lado, mesmo que não tenhamos garantia de resposta.
(2) Andrade, Carlos Drummond. Nova Reunião: 19 livros de poesia. Rio de Janeiro, Ed. J. Olympio, 1983, p. 244.
(3) Ortega y Gasset, J. O Homem e a Gente. Rio de Janeiro, Livro Ibero-Americano, 1960, p. 267-268.
(4) Kujawski, Gilberto de Mello, A Pátria Descoberta, S.Paulo, Papirus Editora, 1992,p.71.
(5) Ortega y Gasset, J. O Homem e a Gente. Rio de Janeiro, Livro Ibero-Americano, 1960, p. 267-268.
(6) Marías, Julián. Ortega - las trayectorias. Madrid, Alianza Editorial, 1983, p. 142.
(7) Barros, Manuel de. Gramática Expositiva do Chão (Poesia quase toda). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1990, p. 298.
(8) Ortega y Gasset, J. La Idea de Principio en Leibniz. Buenos Aires, Emecé Editores, 1958, p. 366.
(9) Bíblia Sagrada, Petrópolis, ed. Vozes, 1982, p. 754.
(10) É bom ficarmos atentos ao perigo de qualquer movimento ou ideologia em que não caiba o senso de humor. Isso é sinal de intolerância e rigidez. Por isso, apesar de seu aspecto cômico não-intencional, o "politicamente correto" não me sabe muito bem.
(11) Ortega y Gasset, J. El Espectador. Madrid, Bolaños y Aguilar, 1950, p. 398. A arte, como diz Ortega, é geralmente mais ligada à estrutura saborosa da vida, mas não está livre de cair na institucionalização.
(12) Em nosso mundo pop, também não faltam exemplos; há uma canção dos Beatles _ Within you, Without you _ que fala em salvar o mundo com o nosso amor, se pudéssemos retirar a muralha de ilusões que não nos deixa ver etc. A canção termina com uma simpática gargalhada que equilibra o tom um tanto patético que poderia se instalar.
(13) "... pois como o crepitar dos gravetos debaixo da caldeira assim é a risada do insensato" (Ecle 7,6).


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“Não sinto nada mais ou menos, ou eu gosto ou não gosto. Não sei sentir em doses homeopáticas. Preciso e gosto de intensidade, mesmo que ela seja ilusória e se não for assim, prefiro que não seja. Não me apetece viver histórias medíocres, paixões não correspondidas e pessoas água com açúcar. Não sei brincar e ser café com leite. Só quero na minha vida gente que transpire adrenalina de alguma forma, que tenha coragem suficiente pra me dizer o que sente antes, durante e depois ou que invente boas estórias caso não possa vivê-las. Porque eu acho sempre muitas coisas - porque tenho uma mente fértil e delirante - e porque posso achar errado - e ter que me desculpar - e detesto pedir desculpas embora o faça sem dificuldade se me provarem que eu estraguei tudo achando o que não devia. Quero grandes histórias e estórias; quero o amor e o ódio; quero o mais, o demais ou o nada. Não me importa o que é de verdade ou o que é mentira, mas tem que me convencer, extrair o máximo do meu prazer e me fazer crêr que é para sempre quando eu digo convicto que nada é para sempre." (Gabriel García Márquez)

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