"Entra ano, sai ano, em alguns encontros de família maiores de repente todo mundo explode em risada, “putz, como é que você lembrou dessa, heim?”
São historias de quando era projetos de gente, e os meninos corriam na beira do telhado enquanto a gente no quarto fazia dormir o bebê e nem imaginava o perigo logo ali em cima. Ou quando eram adolescentes e a gente não adormecia direito enquanto não soubesse que todos estavam em casa. Ou de quando se casaram e pela primeira vez os vimos como realmente eram agora: adultos como nos casamos, tivemos filhos, batalhamos, ganhamos, perdemos.. que coisa.
No tempo em que ainda não era um agrônomo barbudo, mas um menino de bochechas rosadas e olhos de um prodigioso azul, um de meus filhos homens se fez e desfez, montou e remontou a palavra que significava um seu amado companheiro. Aquele, de quase-bebê, que levava por toda parte, o objeto estimado.
Não adiantaram pai e mãe – mesmo sabendo que era bobagem o que estava fazendo – pronunciarem a palavra “correta” diante deles várias vezes.
O correto dele era outro.
Tudo começou com o pedido:
- Mãe, onde tá o meu sivola?
Vários minutos pra descobrir o que era. Cebola? Cavalo? Ceroula nem existia naquela época. Finalmente ele mesmo encontrou, veio abraço ao seu tesouro:
- Ó, mãe, pra nanar.
- Ah, isso aí é travesseiro, filhinho, tra-ve-ssei-ro.
Nos olhos de azul-porcelana imperava uma obstinação tranqüila.
- Sivola.
Semana depois a coisa começou a se desenroscar:
- Mãe, me dá meu sivelo.
Estava melhor, mas ainda.. A gente sabia que era bobagem naquela hora de discutir ou ensinar. Palavras têm sua vida própria, se desenvolvem como plantas estranhas, principalmente em criança. Mesmo assim, alguém tentava:
- Filhinho, olha pra mamãe.
Dois holofotes azuis como só o menino de três anos. Aquela placidez.
_ Fala junto com a mamãe: Tra-ve-ssei-ro.
Ele pronunciou caprichando as silabas, na mesma entonação paciente da mãe.
- Si-vo-la.
- Será que esse menino está brincando comigo? Mas só com três anos?
Os lagos suíços refletiam a impotência materna, que nem mestrado de Linguística, nem manuais de português, nem o marido gramático, nem letras sobre psicologia infantil naquele momento diminuíam. Nada: aquilo ali, na cabeça da criança, é que era real.
Mais uns dias, e o objeto mágico tinha virado “ tassivola”.
Depois “tassivelo”. Tassivelo, tassivelo, e por fim a mãe escutou extasiada:
- TAVESSERO!
O menino era um gênio. O pai depressa escreveu um artigo na coluna de português que publicava diariamente, e a história – como tantas outras-, entrou para os anais da família.
O das histórias publicáveis, naturalmente."
Pensar é transgredir - Capítulo 24, página 95, Lya Luft.
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