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30 de março de 2011

In Pequenas Epifanias

Ela se debruçou sobre mim, tão próxima que consegui ver meu rosto em suas pupilas dilatadas. Era bonita? Pergunta Alguém-Ninguém, a quem tento contar essa história que nem história seria. Fico aflito, tenho sempre tanto medo que me desviem do que estou tentando desesperadamente organizar para dizer; qualquer atalho poderia me perder, e à minha quase história, para todo o sempre. E nada mais triste que histórias abortadas, arrastando correntes, fantasmas inconsoláveis.
Mesmo assim, pacientíssimo, respondi: Não, querido. Era, sim, uma cara de verdade. A de Simone Signoret no final, lembra? A de Irene Papa, Anna Magnani, Fernanda Montenegro. Sem artifícios, crua. Adéli a Prado, Jeane Moreau. Uma cara que se conquista e ousa, que a vida traça, impõe e esculpe fundo em lascas e vincos feitos num mapa em relevo. Anouk Aimée, Marguerite Duras, Vanessa Redgrave. Alguém-Ninguém entusiasma-se com o glamour dessas comparações. Cala-se, olho parado divaga em outras imagens, outras divas. Nem ouve mais, eu continuo a contar.

Nas pupilas dela, desmesurados buracos negros que a qualquer segundo poderiam me sugar para sempre, para o avesso, se eu não permanecer atento - nas pupilas dela vejo meu próprio horror refletido. Eu, porco sangrando em gritos desafinados, faca enfiada no ventre, entre convulsões e calafrios indignos. Eu gritava Senhor de Toda Luz e de Tudo que Existe, dai-me Força, Fé e Luz. Gritei também não-palavras, uivos, descobrindo na carne que o berro alivia a dor. Gado no matadouro, recém-nascido após o tapa e o choque, aterrorizado com a clareza dura e o ruído insuportável do mundo cá de fora. Grito também: Senhor, não agora, porque eu não quero que seja agora. Minhas histórias não escritas, meu jardim? Desafiei Deus, sinto muito, era a única maneira de me salvar. Ele me entendeu. Suponho, embora nunca seja confiável, como diz Hilda Hilst. Então apenas confiei no meu berro de cachorro atropelado na estrada deserta, gato de espinha quebrada a pau rastejando na sarjeto do poema de Ferreira Gullar. Ai, Frida Kahlo...
Naquela cara viva, transbordando para além das pupilas-buracos-negros vi não apenas o meu horror, mas o horror e a beleza de tudo que é vivo e pulsa e freme no Universo, principalmente o humano. Aleph, quem sabe Anima. Não parecia cruel, apenas exata, meticulosa sacerdotisa. Sabre na mão, prestes a arrancar o coração palpitante do menino e da virgem que eu também era. Cumpria sua tarefa. Paraca, Moira, Harpia. Sua pele nem transpirava. E de repente, talvez porque eu tenha lido e sonhado e visto filmes demais, a cara transformou-se na da Górgona. Nada de cabelos de cobras entrelaçados, dentes pontiagudos de marfim.
Continuava de certa forma linda, mas também medonha e agora também mítica. Grega, etrusca, asteca, bizantina, a teia enorme de cabelos negros emaranhados em torno dos pômulos de pedra.

Tão próxima da minha a cara do meu horror de verme vivo, seria fácil ir com ela. Mergulhar em alívio no buraco negro meu de bicho vil, no meu pedantismo de animal aculturado. Para sempre ir. Para o outro lado, onde? Eu não quis. Ou foi Deus que não deixou? Não era hora ou Deus nem tem nada a ver com isso ou qualquer outra coisa, e sequer existe. Não sei. Sei, sem dúvida, que a vi. Depois, emergindo do coma artificial da morfina, cateteres enfiados nas veias, nunca mais a vi. Pelos corredores sangrentos das CTIs, pelos brancos labirintos hospitalares, empurrando macas, fazendo curativos, em nenhum lugar estava mais. Desapareceu. Não temo que volte um dia. E voltará, sina de todo o humano. E sei, sabemos perfeitamente que é essa cara nossa de cada dia, sempre à espreita. Alguém-Ninguém parece despertar. Como se chamava? Pergunta. Respondo em voz tão baixa que nem sei se chego a falar. Nem é preciso.

Amanhã à meia-noite volto a nascer. Você também. Que seja suave, perfumado nosso parto entre ervas na manjedoura. Que sejamos doces com nossa mãe Gaia, que anda morrendo de morte matada por nós. Façamos um brinde a todas as coisas que o Senhor pôs na Terra para nosso deleite e terror. Brindemos à Vida - talvez seja esse o nome daquele cara, e não o que você imaginou. Embora sejam iguais. Sinônimos, indissociáveis. Feliz, feliz Natal. Merecemos.

O Estado de São Paulo, 24/12/1995
(Caio Fernando Abreu)

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“Não sinto nada mais ou menos, ou eu gosto ou não gosto. Não sei sentir em doses homeopáticas. Preciso e gosto de intensidade, mesmo que ela seja ilusória e se não for assim, prefiro que não seja. Não me apetece viver histórias medíocres, paixões não correspondidas e pessoas água com açúcar. Não sei brincar e ser café com leite. Só quero na minha vida gente que transpire adrenalina de alguma forma, que tenha coragem suficiente pra me dizer o que sente antes, durante e depois ou que invente boas estórias caso não possa vivê-las. Porque eu acho sempre muitas coisas - porque tenho uma mente fértil e delirante - e porque posso achar errado - e ter que me desculpar - e detesto pedir desculpas embora o faça sem dificuldade se me provarem que eu estraguei tudo achando o que não devia. Quero grandes histórias e estórias; quero o amor e o ódio; quero o mais, o demais ou o nada. Não me importa o que é de verdade ou o que é mentira, mas tem que me convencer, extrair o máximo do meu prazer e me fazer crêr que é para sempre quando eu digo convicto que nada é para sempre." (Gabriel García Márquez)

Definição

"Me mande mentalmente coisas boas. Estou tendo uns dias difíceis, mas nada, nada de grave. Dias escuros sem sorrisos, sem risadas de verdade. Dias tristes, vontade de fazer nada, só dormir. Dormir porque o mundo dos sonhos é melhor, porque meus desejos valem de algo, dormir porque não há tormentos enquanto sonho, e eu posso tornar tudo realidade. Quando acordo, vejo que meus sonhos não passam disso, sonhos; e é assim que cada dia começa: desejando que não tivesse começado, desejando viver no mundo dos sonhos, ou transformar meu mundo real num lugar que eu possa viver, não sobreviver."
(CFA)

Pausado

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"Tô feliz, to despreocupado, com a vida eu to de bem"

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Um Pouco

"Mas como menina-teimosa que sou, ainda insisto em desentortar os caminhos. Em construir castelos sem pensar nos ventos. Em buscar verdades enquanto elas tentam fugir de mim. A manter meu buquê de sorrisos no rosto, sem perder a vontade de antes. Porque aprendi, que a vida, apesar de bruta, é meio mágica. Dá sempre pra tirar um coelho da cartola. E lá vou eu, nas minhas tentativas, às vezes meio cegas, às vezes meio burras, tentar acertar os passos. Sem me preocupar se a próxima etapa será o tombo ou o voo. Eu sei que vou. Insisto na caminhada. O que não dá é pra ficar parado. Se amanhã o que eu sonhei não for bem aquilo, eu tiro um arco-íris da cartola. E refaço. Colo. Pinto e bordo. Porque a força de dentro é maior. Maior que todo mal que existe no mundo. Maior que todos os ventos contrários. É maior porque é do bem. E nisso, sim, acredito até o fim.” (Caio Fernando Abreu)